Sunday, March 16, 2025

O Grande Irmão já está aqui, da polícia alemã aos EUA. A usar os judeus como arma

 (Este texto é perturbador. A causa de Israel e a suposta luta contra o antissemitismo estão a ser usadas nas “democracias” ocidentais para cercear os direitos civis, mormente a liberdade de expressão e manifestação. É esta a denúncia da autora que, ao que parece, acaba também de ser silenciada pois diz que a sua coluna no Público termina por ora. Junta-se, assim, ao Viriato Soromenho Marques, já silenciado no Diário de Notícias. E viva a democracia…

Estátua de Sal, 16/01/2025)


Daniel Day no topo do Big Ben com a bandeira da Palestina

1. O dia 8 de Março de 2025 — sábado passado — dava um livro. Pouco antes das 7h30, hora de Londres, a polícia de Sua Majestade foi chamada porque um homem escalava o Big Ben descalço com uma bandeira da Palestina. E por mais de 16 horas manteve-se lá, a 25 metros, agarrado à torre, fazendo flutuar a bandeira, pés em chaga como um Cristo. De nome judeu, aliás, porque o Cosmos tem sempre os melhores argumentistas: Daniel Day. Valeu, Daniel.

Este 8 de Março já era dele. Mas durante o tempo em que ficou lá em cima, o céu sobre Berlim e sobre a Casa Branca deu ainda mais sentido àquela escalada, aquele alegre sacrifício. Porque pelas 17h30, hora alemã, a polícia com a palavra POLIZEI incandescente no blusão dava murros na cara dxs manifestantes do 8 de Março, Dia Internacional da Mulher. Não de todas, claro, só dxs que tinham keffiyehs e bandeiras palestinianas, por não separarem a luta pela sua liberdade da liberdade da Palestina. Vi muitas imagens no Instagram, falei com pessoas que lá estavam. Uma delas, portuguesa, foi-me apresentada por um palestiniano. Eles conheceram-se na Europa como aprendizes de luthiers: fazem violas, violinos, violoncelos. Eu conhecera-o em Ramallah. Quando voltei lá depois do 7 de Outubro, passei o Ano Novo com a família dele, então antes da meia-noite ele fez uma chamada-vídeo para apresentar aquelas duas pessoas portuguesas, uma moradora em Berlim, a outra ali ao lado. Foi assim que vi Consti a primeira vez. E neste 8 de Março ali estava a mesma cara nos vídeos com a POLIZEI. Consti levou murros, pontapés, pisadelas da polícia, ficou a sangrar, nariz e boca, a companheira foi brutalmente algemada, revistada e detida, ficou a precisar de tratamento médico.

A violência estatal alemã anti-Palestina tem crescido desde o 7 de Outubro, já carregara sobre os manifestantes na Universidade de Humboldt, e tantos outros. Mas eu nunca tinha visto a POLIZEI da maior potência da UE como agora. Pessoas indefesas e já imobilizadas, algumas a sufocar, a tentarem proteger-se com as mãos, esmurradas como um saco de boxe, arrastadas pelo chão. Bom dia, boa noite, António Costa, um comentário? Nossos governantes parceiros dos alemães, nada?

2. Mas este 8 de Março ainda estava longe de acabar. Porque enquanto Daniel continuava empoleirado e descalço na madrugada gélida de Londres, e as feministas dormiam feridas em Berlim, na Costa Leste dos EUA já era noite mas ainda hora para a polícia de imigração, a ICE, ir prender Mahmoud Khalil à sua residência da Universidade de Columbia, NYC, diante da mulher grávida de oito meses. Sem mandado de captura, e levando-o de imediato para um estado a milhares de quilómetros, o Luisiana. Um rapto oficial.

Trump celebrou com post. Atribuiu a Khalil actividades “pró-terroristas, anti-semitas, anti-americanas” e fez saber que aquela prisão, antecedendo deportação, seria “a primeira de muitas”. A ordem fora dada pelo Secretário de Estado Marco Rubio, invocando uma cláusula remota, raramente usada, para ameaças à segurança dos EUA. Acusam Mahmoud de ser pró-Hamas sem provas. Ele acaba de completar o mestrado, é residente permanente com Greencard, já passou pelo escrutínio de uma organização inglesa com quem trabalhou. É preso agora apenas por ter sido um dos líderes dos protestos de Columbia contra a guerra em Gaza, pelos direitos palestinianos. Porque para o Grande Irmão de 2025 os direitos palestinianos são terrorismo.

3. Mahmoud Khalil é fruto da limpeza étnica de 1948, quando Israel foi fundado e centenas de milhares de palestinianos foram forçados a fugir. Os avós de Khalil eram da Galileia, de uma aldeia perto de Tibérias, então fugiram para a Síria. Duas gerações depois Mahmoud nasceu num campo de refugiados do sul de Damasco. Portanto, um daqueles milhões de humanos que Israel continua a transformar em refugiados mal nascem. Alguns conseguem ir para fora, depois ficar residentes, como Mahmoud, agora casado, prestes a ser pai. Já enfrentara a repressão dos protestos em Columbia e com Trump tudo piorou (no terreno fértil para isso deixado por Biden e pela maioria dos Democratas). Trump cortou 400 milhões de dólares de apoio a Columbia. Dias antes de ser preso, Mahmoud avisou Columbia que corria riscos. Em vão. A polícia pôde ir lá raptá-lo. E Columbia anunciou entretanto expulsões de outros estudantes pró-Palestina, em vez de os proteger. É o futuro da universidade que está em jogo. A liberdade de expressão da Primeira Emenda. A democracia, em alerta vermelho. Mahmoud Khalil é já o primeiro prisioneiro político da era Trump/Musk. Em nome de uma suposta protecção aos judeus.

Milhares de judeus lutam contra isso, e depois da prisão de Mahmoud tomaram o átrio da Trump Tower, quase 100 foram presos. Camisas ou cartazes diziam: “Não Em Nosso Nome”, “Nunca Mais É Para Toda a Gente”, “Parem de Armar Israel”, “A Oposição ao Fascismo É Uma Tradição Judaica”, “Liberdade para Mahmoud, Liberdade Para a Palestina”. Recusam, assim, serem os judeus úteis de Trump, as vassouras da dissidência. Porque a Trump — avisam biógrafos — não interessam os judeus. A Trump, narciso colossal, interessa Trump, a sua glória, a sua estátua de ouro no mundo. Os reféns interessam-lhe (felizmente para vários libertados) como o anti-semitismo lhe interessa: enquanto for útil.

E nada alimenta tanto o anti-semitismo como o Estado de Israel, hoje a maior ameaça para os judeus do mundo. Quase como se um anti-semita estivesse a puxar os cordéis por trás de Israel. Se alguém montasse uma conspiração não faria melhor. Israel é detestado nas ruas do mundo: eis o desfecho do sionismo. Os judeus dos nazis e de há séculos — os perseguidos, os exterminados — são hoje os palestinianos. E toda a gente que esteja com eles, de Berlim aos EUA, está sob mira, ou já atacado. Porque judeus, palestinianos e quem quer que os defenda são ratos de laboratório para o Grande Irmão.

4. Entrámos na segunda semana de Março com dezenas de milhares na Cisjordânia a deambularem por montanhas de lama e entulho, sem terem para onde ir em pleno Inverno, porque Israel acaba de lhes destruir as casas. Enquanto em Gaza continua a impedir toda a entrada de comida e ajuda. “Isto não é um cessar-fogo. É um abrandar da violência militar mas a morte pela fome”, disse Michael Fakhri, relator da ONU para o Direito à Alimentação. Ao mesmo tempo que o Conselho de Direitos Humanos da ONU apresentava uma investigação: Israel cometeu “actos genocidas” em Gaza, atacando a saúde materna, neo-natal, reprodutiva; e pratica violência sexual e de género, incluindo violação. Ontem vi o testemunho de um palestiniano a quem os soldados urinaram em cima e violaram com um pau. Mais um.

Antes, tinha visto o directo que o “Democracy Now” (um tesouro do jornalismo audiovisual) conseguiu fazer com dois médicos voluntários no Nasser Hospital de Khan Yunis, Gaza. Um deles, Mark Perlmutter, é judeu americano. Já o tinha ouvido dizer que a sua experiência de 40 missões em 30 anos, toda somada, “não se compara com a carnificina” que viu na primeira semana em Gaza, as crianças desfeitas, ou atingidas com precisão no peito pelos “melhores snipers do mundo”. E agora contou o que aconteceu com um seu colega palestiniano cirurgião ortopédico de crianças, levado pelas tropas de Israel em Fevereiro de 2024, libertado há pouco. Partiram-lhe os dedos, danificaram os nervos das mãos com que opera, mostraram-lhe fotos da esposa dizendo como a iam violar em grupo se ele não admitisse ser do Hamas. Onde estão os médicos de Israel? Que juramento fizeram?

Entretanto, a palestiniana Educational Bookshop, em Jerusalém Oriental, foi de novo invadida pela polícia, que desta vez deteve Imad Muna, 61 anos, a quem comecei por comprar cadernos e jornais há mais de uma geração. Na pilha dos livros confiscados estavam Joe Sacco, Rashid Khalidi, Noam Chomsky, Ilan Pappé.

Lembro-me da indignação de tantos liberais por se mexer em livros em nome do politicamente correcto: subscrevo, sempre estarei contra. E agora, que não é um parágrafo, é mesmo a caça às bruxas, é mesmo o Grande Irmão: vão defender a liberdade?

A propósito de Daniel Day, com os pés em chaga no Big Ben, também pensei nos vendilhões do Templo. E hoje mesmo li que Israel e os EUA tentaram vender os palestinianos de Gaza ao Sudão e à Somália.

Gaza é o marco do nosso tempo. Nunca mais desde o rio até ao mar.

*Esta coluna para aqui por tempo indeterminado.

(Por Alexandra Lucas Coelho, in Público, 15/03/2025)

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