Friday, October 25, 2024

BES/GES: Quando o accionista assalta o banco, o Banco de Portugal guarda a porta e o Estado paga

 
Quando o PCP propôs, em 2014, a constituição da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à gestão do Banco Espírito Santo e do Grupo Espírito Santo, com vista ao esclarecimento das condições em que foi aplicada a medida da resolução ao BES, e da gestão do banco e do grupo que conduziram à ruptura, fê-lo com a convicção de que constituiria uma oportunidade política relevante para conhecer em detalhe o modelo de governação dos monopólios e da sua relação com o poder político. A vida veio a dar-nos razão. 

O caso BES/GES reforça a necessidade do controlo público do sistema financeiro

A intervenção do Partido nesta CPI foi determinante para denunciar as práticas do sistema financeiro e dos grupos monopolistas, o que aliás pode ser consultado no livro das Edições Avante! O dossier BES/GES, um retrato do capitalismo monopolista em Portugal, material de indispensável consulta quando agora assistimos ao arranque do julgamento de alguns dos seus responsáveis, dez anos após o colapso da instituição financeira. 
O caso da banca, em que ao BES se juntam os processos do BPN, BPP, BANIF e outros, mostram como estão entrelaçadas as privatizações, a corrupção, o poder dos grupos económico e o poder político, a política de direita. 
As práticas que levaram o BES ao seu colapso são internas e externas: o banco financiava as opções de todo o império Espírito Santo, o Banco de Portugal (BdP) fingia regular e supervisionar e os governos enlaçavam-se com o grupo. 
O Grupo e o Banco construíram uma miríade de off-shores, para todo o tipo de pagamentos a grandes accionistas. Recorde-se o exemplo do recurso ao BES Angola para desviar mais de 3 mil milhões de euros para financiar negócios e propriedades que nunca existiram. As grandes auditoras externas ocultavam – pelo menos desde 2001 – a situação de exposição grave que o banco tinha ao GES e tudo isso aconteceu e acontece no “cumprimento da lei”: é a lei que permite as transferências para off-shores; é a lei que dita que o BdP não tem auditoria própria e que os bancos são auditados por empresas  privadas; é a lei que permite que lucros gerados no País não paguem cá imposto. 
E foram as opções políticas que autorizaram o compromisso de milhares de milhões de euros com a resolução do banco e que determinaram que não seria nacionalizada a componente não financeira do Grupo, impedindo que se colmatassem as perdas públicas com o património do GES. E foi o governo PSD/CDS que determinou que o Estado pagaria a factura da corrupção dos grandes accionistas do BES que distribuíam créditos entre si, através do Fundo de Resolução. 
É importante frisar que hoje, como em 2014, ressurgem as ilusões sobre a natureza do fundo de resolução, seguindo Maria Luís Albuquerque, Passos e Portas. Hoje é claro para todos (incluindo para o Tribunal de Contas) que o FdR é uma entidade pública, financiada por dinheiro público. A ideia de que o FdR ressarcirá o Estado pelos empréstimos é falsa: em primeiro lugar, porque o dinheiro que alimenta o fundo é público, resultando de um imposto; em segundo lugar, porque nunca ultrapassou os 225 milhões de euros anuais (cobrados em 2023), o que pode significar que serão necessárias mais de quatro décadas para que o dinheiro seja totalmente devolvido. 
Este é o resultado das opções de PS, PSD e CDS e quanto ao regulador, supervisor e as grandes empresas de auditoria, estes não são polícias do sistema financeiro, antes os condutores do carro de fuga que, cúmplices, aguardam à porta disfarçado e tranquilizando os transeuntes. 
A realidade aí está a demonstrar que PS, PSD e seus sucedâneos pretendem continuar a farsa e a ocultação. As privatizações de que somos contemporâneos demonstram isso mesmo: esse compromisso dos governos com a grande burguesia nacional e transnacional ultrapassa qualquer medida de mero bom-senso e acautelamento do interesse público. 
Aqui chegados, o julgamento dos arguidos do caso BES não pode reduzir-se a uma espécie de expiação da culpa de um grupo circunscrito de malfeitores, antes tem de se constituir como um momento que ilustra as práticas e resultados das privatizações, da gestão privada da banca da farsa da supervisão, da subordinação do poder político ao poder económico, reafirmando a necessidade do controlo público do sistema financeiro.

Miguel Tiago
(Avante! 24.10.2024)     

Wednesday, October 23, 2024

Como é que se esquece alguém que se ama

Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está?
As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar. 

É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si, isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução. 

Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha. 

Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado. 

O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar. 

Miguel Esteves Cardoso, 
in 'Último Volume'

Tuesday, October 22, 2024

Das minhas memórias

 
Neste mesmo mês de Outubro, há 25 anos, fui pela primeira vez trabalhar nas autárquicas do distrito da Guarda. Aquele trabalho chato, mas muito gratificante, que é o de fazer listas com as candidaturas a 14 concelhos e 242 freguesias.
Hoje telefonei a uma Camarada (que quando sabia que eu ia ficar a trabalhar noite dentro, em todos os anos que lá trabalhei, me levava ao final da tarde pasteis de bacalhau) porque o filho fazia anos e queria dar-lhe os parabéns.
Acabei por falar com o aniversariante, que faz hoje 35 anos!!!! E não é que o jovem se mete comigo? Disse-me, a determinada altura da conversa, "pois é, quando eu te fui ajudar a primeira vez e te mostrei o trabalho disseste-me 'quem se mete a trabalhar com putos...', é que eu tinha agrafado as listas todas ao contrário..."
Rimos. O miúdo tinha 9 anos e queria ajudar. Agrafar papel não custa nada. Não sei que voltas ele deu às listas, depois foi só desagrafar e voltar a agrafar como a lei exige.
Ontem tinham-me perguntado o que me ligava à Guarda.
Para além de tudo o resto, é também esta cena, e outras, mais tarde, com 'camaradinhas' que hoje têm 18 ou 15 anos, e que também sempre queriam ajudar.
Está prometido, Daniel, um dia destes os km fazem-se pela A23.

Sunday, October 20, 2024

*

 
Podem as palavras um dia renascer? Pode o vento trazer de novo a ternura?
Pode a borboleta deixar ovos que implodem com o tempo e no final de todo o processo surgir a borboleta de asas azuis que se confunde com o céu?
Podes tu ainda voar no calor do meu abraço?

Thursday, October 17, 2024

Não posso adiar o amor



Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora intensa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa
(17.10.1924-23.9.2013)

Tuesday, October 15, 2024

Os olhos do poeta


O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo,
e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem.
Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,
e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria,
com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.
Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos
e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias
e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da terra
e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas
e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gestos dos polos, brancos, brancos,
e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram
e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando com contos-de-fada à hora da infância
e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas
e correndo pela costa de mãos jogadas pró mar amaldiçoando a tempestade:
- todas as cores, todas as formas do mundo se agitam e gritam nos olhos do poeta.
Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório,
sai uma estrela voando nas trevas
tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes.
E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta
que escreve poemas de revolta com tinta de sol
na noite de angústia que pesa no mundo.

Manuel da Fonseca, “Rosa dos Ventos”

Sunday, October 06, 2024

Abandono (Fado Peniche)


Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar.
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar.

Levaram-te a meio da noite:
A treva tudo cobria.
Foi de noite, numa noite
De todas a mais sombria.
Foi de noite, foi de noite,
E nunca mais se fez dia.

Ai dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar.
Oiço apenas o silêncio
Que ficou no teu lugar.
Ao menos ouves o vento!
Ao menos ouves o mar!

David Mourão-Ferreira

Wednesday, October 02, 2024

Dia 342.


Abraça-me. Quero ouvir o vento que vem da tua pele
e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos.
Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser
este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida
na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos
para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas.
Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti
eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida.
Procura-me com os teus antigos braços de criança
para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável
de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram.
Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor.
Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos,
para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros
pequeninos. Só essa água fará reconhecer
o mais profundo, o mais intenso amor do universo,
e eu quero que dele fiquem a saber
até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes.