Wednesday, September 09, 2009

A INVENÇÃO DO AMOR


Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem uma mulher um cartaz denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos

Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos Decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade

É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas Sobretudo
protejam as crianças da contaminação
Uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que se fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas

...

Organizem em cada bairro em cada rua em cada prédio
comissões de vigilância. Está em jogo a cidade
o país a civilização do ocidente
esse homem e essa mulher têm de ser presos
mesmo que para isso tenhamos de recorrer às medidas mais drásticas

Por decisão governamental estão suspensas as liberdades individuais
a inviolabilidade do domicílio a habeas corpus o sigilo da correspondência
Em qualquer parte da cidade um homem e uma mulher amam-se ilegalmente
espreitam a rua pelo intervalo das persianas
beijam-se soluçam baixo e enfrentam a hostilidade nocturna
É preciso encontrá-los É indispensável descobri-los
Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater
É possível que cantem
Mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
Lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa das montanhas

Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo assim desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

...

Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua

...

Algures no labirinto a cidade um homem e uma mulher
amam-se espreitam a rua pelo intervalo das persianas
constroem com urgência o universo do amor
E é preciso encontrá-los E é preciso encontrá-los

...

Ficou provado que não se conheciam
Encontraram-se ocasionalmente num bar de hotel numa tarde de chuva
sorriram inventaram o amor com carácter de urgência
mergulharam cantando no coração da cidade

Importa descobri-los onde quer que se escondam
antes que seja demasiado tarde
e o amor como um rio inunde as alamedas
praças becos calçadas quebrando nas esquinas

Já não podem escapar Foi tudo calculado
com rigores matemáticos Estabeleceu-se o cerco
A policia e o exército estão a postos Prevê-se
para breve a captura do casal fugitivo

DANIEL FILIPE
In: A Invenção do Amor e Outros Poemas

34 comments:

Memória de Elefante said...

...com certeza irei para a prisão!!!

simplesmenteeu said...

..."e inventaram o amor com carácter de urgência"
Nalgum tempo e altura, o amor foi essa verdade - urgente, incontrolável e invencível!
E, há quem sempre busque, repetir esses momentos... Essa força capaz de tudo!
E há também, quem sempre se sinta ameaçado...

Obrigada por estes momentos. Saudosos momentos|

Beijo grande, enorme de sempre

Little Monster said...

E não é delicioso falar de amor.. ainda que no fim da história a única cisa que se consiga fazer seja chorar... de alegria ou tristeza ou simplesmente por ser comovente.

Parabéns ao Daniel :)

salvoconduto said...

Essa é que é a verdadeira pandemia, por favor não me ponham uma máscara.

Abreijos.

samuel said...

Grande livro!
Quando era cachopo achava que havia de fazer um filme disto...

Abreijos (com carácter de urgência)

Maria said...

samuel

Foi feito um filme disto, nos anos de 65 ou por aí, um filme com artistas amadores e que passava apenas em colectividades. Tive a sorte de o ver em Leiria, à porta fechada. Vinte minutos de filme (mais ou menos) que me puseram a chorar e a comprar o livro de imediato... com carácter de urgência...

Abreijos (com carácter de urgência, também)

anamar said...

Quando fiz o Curso de Expressao dramática com João Mota, o meu trabalho final, foi sobre este poema de Daniel Filipe, que sempre achei que encaixava em mim por qualquer razão...
Asaim o recomendei de leitura no Mar á Vista:
Fiquei contente de o reler e por isto ou por aquilo, está sempre actual em qualquer coisa....
Abracinho

Vera said...

Adoro este poema. Está ali numa edição já bem usada e velhinha ;-)

zmsantos said...

Grande livro, que me traz gratas recordações.

Beijo, Maria

A CONCORRÊNCIA said...

Oh Maria o que tu me fizeste recordar, e que bom que é recordar amiga.

Um beijo para ti.

P.S. Peço desculpa pelo atrevimento, mas este livro tem tanta importância para mim que fui incapaz de não escrever sobre ele.

amigona avó e a neta princesa said...

Não sei que diga, não sei! Trouxeste-me tantas recordações! É lindo Maria, lindo! Há tanto tempo que não o lia! Beijos amiga...

Catarina Alves said...

Só para dizer que gostei muito de ter estar contigo. :D

Que venha a próxima Festa!

...

Tenho "A Invenção do Amor" num ficheiro de som, lido pelo autor. Tens?

Beijinho

Maria said...

Catarina Alves

Na próxima Festa organizamo-nos de outra forma por causa dos 'encontros imediatos'...
:))

E o que tens no ficheiro de som tenho eu num LP - vinil - sabes o que é? :))))

Beijinhos

Catarina Alves said...

Pois é, tens razão.

Foi azar termos todos ido ver o mesmo! hihi É sinal que temos todos bom gosto!

Mesmo assim gostei. Gostei da expressão "Mas de que de sitio é que vocês se conhecem! Esta é que é a tua amiga?!" hihi

...

Sei o que é... :P

Beijinhos

clic said...

Xiiiiiiii, há que tempos que não o lia!...

Obrigada :)

Beijo

João Paulo Proença said...

Maria:

Fiquei preso ao teu post. Já há uns tempos tipa publicado o poema no meu blogue.

É um texto fabuloso.

Adorei os comentários daqui... De facto venha esta pandemia!

Também tenho o livro comigo já marcado pelo peso dos anos.

Que boas memórias me trouxeste.

(se te enviarem o audio completo... lembra-te de mim!)

Beijo

João P.

Licínia Quitério said...

É um belo Poema. Fizeste bem lembrá-lo.
Beijinho.

Justine said...

Também tenho essa preciosidade de livro. Com a mesma capa! Dos tempos gloriosos:))

Pitanga Doce said...

"que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana"

"Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo"


E mais não digo.

Agulheta said...

Maria. Era bom iventar o amor" com urgência e poemas destes iguais,que adorei ler.
Beijinho

Lídia Borges said...

Tão bonito este poema de Daniel Filipe!
Inventar o amor, assim, e deixá-lo contaminar o mundo...

Um beijo

Tite said...

Ainda bem que toda esta gente nos abriu o caminho da liberdade.

Só não sei se estará a ser bem aproveitada.

Demos tudo aos nossos vindouros de bandeja e agora... há coisas que dói e nem sequer são amor são... egoísmo puro.

Desculpa estar amarga mas sempre que me lembro do que foi feito por eles e o que eles fazem por nós...

Fernando Santos (Chana) said...

Olá Maria, belo livro...Espectacular....
Beijos

Anonymous said...

oh! Maria!
li e reli e voltei a ler. gostei tanto. poderia dizer amei. mas amei é pouco para o tanto prazer que tive ao ler.
não encontro um adjectivo.
mas dado o meu instinto, e a minha forma natural de ser, se encontrasse assim um amor, não me importava que me procurassem...

mesmo muito, muito interessante, uma grande verdade. quando alguém se ama em silÊNCIO, QUANDO ALGUÉM faz do amor uma urgência num dia de chuva, gostei do pormenor... há sempre meio mundo a condenar, não porque não goste, mas pelo medo do contágio :))
eu estou simplesmente contagiada.

um grande beijo sempre meu

Cristina Caetano said...

Adoro esse poema de Daniel Filipe. :)

Beijinhos

do Zambujal said...

Sabes, Maria... já te disse?, sabes que tenho (eu!... não é o dela!) a mesma edição... mas com um dedicatória do Daniel Filpe, que foi meu companheiro de trabalho durate meses de amizade e camaradagem?
E sabes?, então não sabes?!, que tenho aqui no computador o poema dito pelo Daniel Filipe? Queres ouvir no domingo? Vem mais cedo!

Obrigado e
Beijo

EU said...

que saudaaaaaaaaaaadeessss...

obrigada :)

do Zambujal said...

Já vi que tens!... vem à mesma mais cedo!

Clotilde S. said...

Amar é preciso e urgente.

Um abraço longo!

Clo

Maria said...

do Zambujal

Irei, sim!
Até domingo.

Beijo

Maria said...

Muito obrigada a todos que aqui passaram.
Daniel Filipe merece ser relido, e lido por quem ainda não o conhece.

Beijos a todos

Fernando Samuel said...

Palavras para quê?...


Um beijo grande.

AnaMar (pseudónimo) said...

Só tu me fazes emocionar.
Mesmo com palavras dos outros, em memória.

1001 bjs

Anonymous said...

tenho este livro....há tanto tempo...
:)


ke bom este reencontro.



beijo Maria.ilha....:) sempre.



(piano)