Thursday, November 06, 2008

Cântico negro

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!
"Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

(José Régio)

44 comments:

Anonymous said...

Olha que eu sei para onde quero ir...para onde o corpo me está a pedir.

Ontem foi dia de noitada e eu não ganho juízo.

Abreijo.

em azul said...

"Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos..."

Amo o certo e o incerto, a noite
o dia... o silêncio e a romaria.
Amo a acalmia e a tempestade, a chuva e o vento... e para tudo amar quero ter tempo... para
tudo amar não páro ou penso!


Beijo, Maria da ilha
em azul

ps - Já tens/temos 1 candidato e uma candidata para os bestes e os bestões!

João Paulo Proença said...

Eu amo o Longe e a Miragem,
Eu amo o Longe e a Miragem,
Eu amo o Longe e a Miragem,

Obrigado Maria por nos teres lembrado o poema

Deveria ser obrigatório tê-lo na carteira e Lê-lo na paragem do autocarro de modo a sair por aí...

bjs

João P.

Unknown said...

Escolha óptima, amiga. É um dos melhores poemas da poesia portuguesa, de todos os tempos. E doi-me ver este poeta, enorme, tão esquecido ( se fosse só esse! ) Que bom. Tu és assim, tens este dom de me surpreender, embora não haja razões para formular este tipo de pensamento. Não ligues. Não me vou surpreender mais. Beijinho e boa noite e obrigado.
EA

Leticia Gabian said...

Maroca,
A minha vida é um vendaval que vai me levar pra onde eu quero ir (em Janeiro)!

Beijo enorme, amiga-irmã

Ana said...

Extraordinário poema de José Régio. A saudável Loucura de ser diferente.
Um beijo, Maria, para ti que também o és!

Susete Evaristo said...

Gosto da força das palavras deste poema de José Régio e de cada vez que o leio não é a minha voz que ouço, são as vozes de João Vilaret e Mário Viegas, os maiores declamadores a que devo o gostar de poesia.

SMA said...

E olhos mudam o mundo. e os olhos pulsam vidas. e os olhos amparam.te
.
.
.
e os meus olhos esperam que te sentas
Esperava-te para ceiar :-)))
.
.
bjo

BlueVelvet said...

Porque será que acho que sei, exactamente, porque escolheste este poema maravilhoso para hoje?
Beijinhos amiga

Carminda Pinho said...

Gosto muito deste poema.

Beijos, Maria

A CONCORRÊNCIA said...

O importante é sabermos para onde queremos ir, e termos força e garra suficientes para lá chegarmos.

Beijos Maria

P.S. é lindo este poema !

zmsantos said...

É o sonho que nos move. Se for um louco sonho, então não há margens que o segurem no leito.
Vai, Maria-Vendaval, apanha a onda que se alevantou...

Beijo.

Teresa Durães said...

este poema de José Régio é lindíssimo (assim como a sua poesia)

Anonymous said...

Das maiores certezas que tenho...

Adoro José Régio!

Lindo... Lindo!

beijos
Ausenda

Anonymous said...

Para a Maria

"Na terra nua, as asas desdobraram,
Espigaram,
Deram flor.
Se ali passar alguém
Que tenha o olfacto fino e o dom do humor,
Dirá que aquele morto é um amor:
Dá flor e cheira bem."

José Régio - Novo epitáfio para um poeta

rosa dourada/ondina azul said...

Passei para te deixar um abraço :)

De caminho, li e reli
José Régio!

Carla said...

estava a ler e a pensar...onde é que eu já li isto...a meio da leitura o nome de Régio saltou-me e fiquei a saber para onde não quero ir. para onde vou os passos começam agora a (re)descobrir
beijos

Rosa Maria said...

Este poemas é daqueles que nunca nos cansamos de os ler.

Obrigada!

Beijo

FERNANDA-ASTROFLAX said...

Olá minha querida Amiga Maria, lindo poema de josé Régio, um poema histórico, um poema com muita força... Eu sei porque o escolheste... Guardo silêncio... Respeito-te!...
Beijinhos de muito carinho te ternura,
Fernandinha

Elvira Carvalho said...

Um dos poemas mais belos que já se escreveram. E ao qual ninguém fica indiferente.
Um abraço e tudo de bom

pico minha ilha said...

Nem por aqui ou por ai, vou sim onde meu coração me diz.Beijinho Maria

Agulheta said...

Maria. Este é um dos belos poemas de Régio que tão esquecido está,se devia criar um disciplina nas escolas, onde se desse a conheçer os escritores portugueses que tão bem escreveram poesia.
E como hoje faz anos que nasceu Sophia Mello Breyner,nada melhor que este poema.


Ó noite

Ó noite, flor acesa, quem te colhe?
Sou eu que em ti me deixo anoitecer,
Ou o gesto preciso que te escolhe
Na flor dum outro ser?
Sophia Mello Breyner

Beijinho

miguel said...

um dos mais poderosos poemas de sempre, dentre os portugueses e os demais. régio em toda a sua dimensão.
um abraço

miguel said...

um dos mais poderosos poemas de sempre, dentre os portugueses e os demais. régio em toda a sua dimensão.
um abraço

Adriana said...

Isto foi uma das coisas mais lindas que já li!

Sem comentarios,comentando!

As palavras que te digo said...

Beijinhos Maria, por aqui.Salomé

SILÊNCIO CULPADO said...

Maria
Não há quem goste de poesia e seja português que não conheça o Cântico Negro. É um poema muito emblemático. Eu também digo muitas vezes a mim própria: sei que não vou por aí!...
Foi bom reler José Régio aqui neste teu espaço.
Um abraço apertado

Oris said...

Este poema está na memória de muitos de nós...Nunca cansa!!!

Beijitos

Anonymous said...

Vamos por onde temos que ir...
Kiss

mariam [Maria Martins] said...

Maria,
Obrigada, por esta escolha, sua. leitura. minha.

grande abraço
um sorriso :)
e um beijo

mariam

Anonymous said...

Que bom recordar aqui José Régio!

Beijinho

Anonymous said...

Maria
Grande poema imortalisado por João Vilaret e Mário Viegas.
Obrigado amiga
Um bjo

Fernando Samuel said...

A meu ver, este poema confirma a inegável qualidade da poesia de régio e o inegável individualismo extremo do autor - para o qual o seu umbigo era o centro do mundo.

(e a verdade é que, não indo «por aí» ele foi... por aí...)


Um beijo grande.

mfc said...

É um hino à decência!

Maria said...

blue velvet

fernanda e poemas


Nenhuma razão especial ou pessoal me levou a escolher este poema. Obrigada pela preocupação...
:))))

Maria said...

Muito obrigada a todos que passaram aqui, hoje.

Beijos

batista said...

já se vai um bom tempo desde que li pela primeira vez esse poema... relê-lo tornou-se algo tão bom quanto rever o mar.

NEA said...

Olá!Não é a primeira vez que ca venho mas é o meu primeiro comentário.
Adoro este poema deste a minha adolescência! Marcou a minha vida.

Lúcia said...

Um grito, este Cântico Negro.
Beijinhos, Maria

Filoxera said...

Vale sempre a pena voltar a este poema...
Beijinhos, amiga.

Orlando Gonçalves said...

Grande escolha amiga.
Eu também não sei para onde quero ir, às vezes faço lembrar a canção do António Variações " Só me apetece estar, onde não estou..." Mas uma coisa sei, que só vou onde quero e por aí não vou.
Beijos amiga

lisse said...

Obrigada por este poema.Foi dos primeiros que eu decorei, sem dar por isso...
Durante muito tempo ouvia-o quase diariamente, na voz de João Villaret. Ainda guardo religiosamente o disco e ainda não deixou de ser actual...
Pena que eu tenha perdido a garra ou a crença desse tempo.

Abraço
com afecto sempre acrescido

AnaMar (pseudónimo) said...

Relembrei ao ler. Depois nos ouvidos a voz de Mário Viegas. E por momentos, os olhos embaciados pela emoção de memórias.
Bjs

CNS said...

Um dos meus poemas preferidos. Que não me canso de ler e reler. E ouvir.

um beijo